quinta-feira, 4 de setembro de 2014

se querer fosse poder...

 imagem: Manuel Alves

Quando nascemos do lado errado da vida nunca achamos que cada um só tem a sorte merecida. Ninguém merece nascer apenas para morrer. Teria de haver muita culpa nessas almas, uma infinidade de actos grotescos em milhões de vidas anteriores para justificar o horror dos horrores. Um nado-morto, o sentido da vida com significado torto. Só todas as culpas do Universo têm razão para terminar uma esperança no início. Uma criança, nascida sem actos, nem mácula na memória, nem maldade no seu breve instante da História, sem parte na matança, nem a vergonha do vício. Uma criança, apenas e só. Excluída da sorte, sem dó.
Se é essa a sorte que cada um merece, as atrocidades convertem monstros em santos e tudo significa o contrário, pois a existência caiu no conto do vigário. A humanidade é uma palavra que morre e não deixa saudade. O sonho, por mais que combata tiranos, déspotas, fascistas e todas as falhas de carácter previstas, nunca alcançará a liberdade. A vontade de realizar o desejável será impossibilidade intolerável. Porque a sorte não é só a que merecemos. Umas vezes, procrastinamos e, contra toda a sanidade, alcançamos. Temos. Outras vezes, trabalhamos e, cumpridas as responsabilidades, falhamos. Perdemos.
A sorte é uma mentira cruel que mantém o azar fiel. A esperança diz-nos que não foi hoje, mas será amanhã. Melhor sorte virá. E continuamos a nossa afã, à espera do oxalá. A adivinhação do povo, das bocas de bruxos e adivinhos que sabem tudo de uma vida, antes da célula se multiplicar em ovo, mesmo os detalhes mais comezinhos. Mas eles não sabem nada, na sua sabedoria inventada. Pode lá saber-se o futuro antes de ele vir. É colher a flor e dizer que é fruto maduro, em essência, mentir. E quem for novo na vida, e não tiver experiência, acreditará em qualquer tristeza apresentada a sorrir.
Dizer que a sorte tem a medida certa é disparar projéctil que não acerta. A sorte é a convergência das circunstâncias, sem significado profundo. Não há ciência. É apenas o acaso do mundo. Nascer na riqueza não é nenhuma forma de grandeza. Quem não tem pão desaparecerá no mesmo chão.
A grande felicidade da vida é aproveitar a sorte merecida, não pensar em quem tem mais do que merece, e partilhar o possível com aqueles a quem a sorte esquece.

11 comentários:

carpe vitam! disse...

"A grande felicidade da vida é aproveitar a sorte merecida, não pensar em quem tem mais do que merece, e partilhar o possível com aqueles a quem a sorte esquece." - é mesmo isso, que pertinência, gracias! :D

Anónimo disse...

Senhor Manuel Alves esteve quase um mês sem publicar algo aqui no blogue...Os teus leitores (as pessoas que gostam de te ver,a ler) estão com azar.Eu já tinha saudades tuas e as minhas saudades são um problema teu porque quem desperta afectos tem que ser capaz de os alimentar!
Volto já para comentar isto como deve ser.É uma questão de respeito por ti,entendo que mereces mais que um comentário de circunstância*

Imprópriaparaconsumo disse...

Sempre disse que a vida é uma roleta russa. Sorte ou azar, eis a questão.

Manuel Alves disse...

Olá, carpe. :)
Coisas simples... ;)

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Olá, senhora Til. :)
Tenho andado ocupado com o próximo livro. Será publicado em breve e, depois, ficarei com mais tempo para (talvez) publicar aqui com maior frequência. :)

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Olá, Imprópriaparaconsumo. :)
É o jogo das probabilidades e o benefício das circunstâncias. Para além disso, temos é de jogar com as cartas que nos são dadas e, quando possível, fazer alguma batota para não sermos derrotados pelo azar que temos na mão. ;)

Bryseyas disse...

Olá Manuel
Acho que ng nasce do lado Contrário da vida,todos temos um propósito, até o que nasce morto..

gostei muito do texto
bjos

Manuel Alves disse...

Olá, Bryseyas. :)
Eu não sei tudo acerca da vida, e posso apenas interpretar as experiências que chegam até mim. Naturalmente, haverá propósitos que me escapam. :)

Unknown disse...

Parabéns! Que espetáculo de texto!

Manuel Alves disse...

Olá, Cristiane. :)
É uma sorte encontrar corações que batem mais forte com os ecos da palavras. :)

Anónimo disse...

Ontem esteve imenso sol e até a simpatia andou no ar...
Eu adoro chuva!!!
Agora o texto,Senhor Manuel Alves,a pessoa mais importante que aqui está:),,,olha o elogio,Senhor*
Isso de nascer do lado errado da vida pode ser,apenas,uma vicissitude que podemos sempre ultrapassar.Basta querer muito e ter vontade disso.Às vezes querer e poder juntam-se e fazem acontecer.A união é uma espécie de ser!Mas não estamos a falar da mesma coisa...acho eu!
...
Um nado morto?Nascer para morrer?Horror dos horrores?Uma esperança no inicio?Criança?
...
A sorte que temos não é sempre o que merecemos.Umas vezes mais,outras menos...A sorte não tem a medida certa!Mas às vezes temos sorte e não sabemos!!!
Tu tens imensa sorte.Fizeste por ela mas não te sabes aproveitar dela...Divulga-te!!!Leva-te às pessoas.Dá-te a conhecer!!!Partilha-te*
Se calhar desviei-me do assunto...Não faz mal.Eu engano-me sempre nos caminhos por falhas de orientação.Mas chego lá.Sempre!E...Onde eu queria chegar é:a mediocridade está a publicar e tu não.Explica-me isso,se souberes*

***(não metas a sorte no assunto)***

Beijinhos com muito azar (a ver se te dão sorte)*

Manuel Alves disse...

Til, entre o optimismo e pessimismo, normalmente decido-me pela perspectiva "a vida é como é, e o controlo que temos sobre ela depende tanto de nós como de qualquer outra influência". Nesse sentido, é frequente que outras influências pesem muito mais do que a força (determinação, sabedoria, capacidade, oportunidade... sorte) que temos para as contrariar. Por exemplo, em termos absolutos, pobreza não é maldição que assegura infelicidade e riqueza não é bênção que garante felicidade, mas o bom senso dirá a quem lhe der ouvidos que uma criança nascida numa família pobre tem muito menos possibilidade (real) de realizar sonhos e concretizar objectivos do que uma criança nascida numa família rica. E estamos apenas a abordar a questão do dinheiro (incontornável numa sociedade enraizada no capitalismo). Nem é preciso abordar questões culturais, étnicas, religiosas, geográficas e a guerra... falemos ainda menos da guerra.
Dito isto, cada um tem o poder relativo de direccionar a própria vida no sentido que pretende. Mas, como o poder é meramente relativo, é bem provável que se encontre obstáculos que obrigam a desvios capazes de impedir que se alcance o destino. Assim, ao menos, que se aproveite a viagem o melhor possível. E, se houver sorte (não é uma entidade metafísica, é apenas a convergência favorável das circunstâncias), talvez... talvez se alcance o destino desejado. :)

Suponho que seja justo afirmar que cada um saberá, melhor do que ninguém, a sorte que tem. A sorte só ocorre quando a pessoa contemplada tira proveito do benefício e, se é preciso fazer o que quer que seja para ser beneficiado, nesse caso, não é sorte, é trabalho. Vou trabalhando, enquanto a sorte não vem. ;)

Quanto à questão de a mediocridade estar a publicar, não tenho dados suficiente para uma resposta mais completa. Evito ler livros medíocres. :)

Anónimo disse...

Obrigada pela resposta (a gratidão é uma coisa bonita)...
Tu sabes que a tua definição de sorte é redutora e preguiçosa.És tu*
Entre o optimismo e o pessimismo também encontramos a resignação que é uma forma camuflada de ser medíocre. Ser medíocre é pior que ler livros medíocres...Não és,portanto,não sejas!
As tuas decisões são o que são e tu não contrarias isso e sim estou a falar de sermos os piores juízes em causa (=casa) própria.É justo afirmar que foste contemplado mas não sabes a sorte que tens!Mas aprecio a tua determinação,pouco sábia,em não fazer força para a sorte acontecer.São as tuas questões (psicológicas?)que não vou abordar,por incompetência...Viajar por viajar é ser pobre.Há vários meios de transporte e vários meios de felicidade.A pobreza pode ser uma bênção e a riqueza uma maldição completa...em termos reais e absolutos!Por uma criança nascer pobre não acaba a primavera (eu sei que é andorinha).Por falar em capitalismo,porque não apareces em nenhum programa de nenhuma feira do livro realizada algures neste país à beira mar plantado?
O poder é relativo e tu tens o poder de desiludir as pessoas que tem boas expectativas acerca de ti.Tu és a sorte ou o azar de algumas pessoas.Faça o favor de brilhar (olha o Nobel...):)
Um beijinho*