Junto ao mar
havia uma feiticeira. Diziam que quando as mulheres nasceram, ela foi a
primeira. Espalhavam-se rumores de maledicências cheias de horrores. Que a feiticeira
encantava homens sem calma, que depois de seduzidos perdiam a alma. Eram
tiranias de línguas truculentas que mexiam nas bocas de mulheres ciumentas. Junto
ao mar vivia apenas uma mulher muito só. Tudo o que diziam eram coisas
mesquinhas de gente sem coração nem dó.
A mulher
chorava a morte do marido como se cada instante fosse aquele em que ele tinha
partido. Partir não era a mesma coisa que morrer. Partir era deixar de viver de
uma maneira menos feia. Já morrer, isso, era coisa de mosca comida na teia. Mas
a mulher não chorava com lágrimas. Cantava e dançava. Fazia versos no baloiçar das
águas. Era assim que imaginava filhas nas ondas e espantava as mágoas.
Mas as putas
das línguas envenenavam-lhe a reputação. As mulheres ciumentas inventavam-lhe
traições de coração. Diziam que a feiticeira comia maridos. Que os fazia sair
de casa, e até deixar os filhos esquecidos. A feiticeira destruía o lar de
qualquer homem que fosse capaz de a amar. E todos eram capazes. Homens e até
rapazes.
A mulher sentava-se
na praia, tardes inteiras, à espera do pôr-do-sol. Às vezes, os homens que
regressavam do mar ofereciam-lhe coisas apanhadas no anzol. O que ela queria
era que lhe oferecessem companhia. Nenhum ficava. Todos tinham receio do que
depois se falava. E ela ficava sentada na areia até escurecer. Havia noites em
que esperava pela lua cheia que vinha depois de o sol descer.
As putas das
línguas só falavam da devassidão que se passava na escuridão. A feiticeira
tinha mais poder quando se acabava a luz do dia. Não havia nada que não pudesse
fazer, e fazer tudo era o que ela queria. Entoava feitiços para deixar os
homens submissos, e mexia-se em danças despidas de saia para cativar os homens
que regressavam de noite à praia. A feiticeira deixava as camas vazias e frias.
Arrefecia matrimónios com o bafo gelado de fantasmas e demónios.
A mulher
adormecia com o fervilhar da espuma salgada. Era verdade que se despia, mas
para se banhar no mar e adormecer lavada. Lavada de memória e não de pele, que
o sal seca e deixa a escória que estala em casca que apenas a água doce repele.
Gostava de adormecer assim, na escuridão e sozinha. Mas, às vezes, lá vinha um
ou outro homem que trazia na mão uma luzinha. Não tinha o direito de mandar
ninguém embora. A praia era deles também, e pertencia-lhes a qualquer hora.
As putas das
línguas reclamavam de todas as manhãs passadas sozinhas na cama, porque os
maridos já não se encontravam. Era a feiticeira que os levava. Ela mandava no
sono das pessoas que se deitavam de corpo cansado. Quando uma esposa fechava os
olhos na luz que se apagava, o marido era-lhe roubado. Era preciso fazer alguma
coisa que a levasse dali com os seus encantos. Não iam perder mais maridos
depois de já terem perdido tantos.
A mulher
acordava com os passos dos pescadores que se levantavam cedo para a faina. Era
um deslizar de barcos na areia, que se faziam ao mar. O canto do galo daqueles
lados era a coragem dos homens acordados que não se deixavam intimidar.
Deitavam pés descalços à água, sujeitos aos azares do desgosto e da mágoa. Ela
só pensava ai se o mar não amaina. Pedia
à Santa para os proteger. A todos, sem escolher. O marido tinha-lhe partido num
dia em que ela se esqueceu de fazer aquele pedido.
As putas das
línguas tecerem planos malvados. Não queriam que os maridos continuassem
enfeitiçados. Enquanto eles lutavam com o mar, lá muito longe do olhar, elas
pensaram no que fazer para aquilo se resolver. As feiticeiras atavam-se e afogavam-se.
Iam fazer tudo às suas próprias custas, e deixariam as contas saldavas e
justas. A feiticeira não havia de lhes levar mais maridos. Já bastava o que
sofriam pelos idos.
A mulher tinha
deixado os pescadores passar, e adormeceu outra vez. Antes não se tivesse voltado
a deitar. Foi o pior e último erro que fez. Acordou novamente, rodeada de
gente. Estava deitada no meio de uma roda de esposas muito zangadas. Foi
enrodilhada em cordas bem apertadas. Sorriu para aqueles rostos cheios de ódio.
Sentia-se a vencedora no primeiro lugar do pódio. Finalmente ganharam coragem
para a atar. Ou cobardia, não sabia. Só sabia que a seguir a deitariam ao mar.
As putas das
línguas desculparam-se umas às outras, sem excepção. Aquilo era o que tinham de
fazer, e bastava como razão. Não tiveram piedade para a arrastar até à água e
apenas deixá-la afundar. Ergueram-na nos braços e percorreram a praia em
movimentos de saia, com o peso da feiticeira a afundar-lhes os passos. Subiram
lá acima, bem ao topo da colina. Seguiram o caminho do rochedo onde as alturas
davam tonturas de medo. Era ali que o iam fazer. Iam atirá-la lá de cima e ficar
a vê-la morrer.
A mulher fechou
os olhos e aceitou. Chorou. Não era feiticeira, nem tinha roubado um único
marido. Nada daquilo fazia sentido. Sentia saudades daquele que perdeu. Mas
esse marido era seu. Ia voltá-lo a abraçar. Pediu às putas das línguas que a
atirassem ao mar.
4 comentários:
Muito bonito e poético, mas o pior é a verdade que se mostra nas tuas palavras...
Olá, Marco.
Desde que fui raptado por extraterrestres, que viajaram no tempo para me lançarem um feitiço, fiquei a saber coisas... XD
Gostei muito, apesar de sentir pena da mulher...mas a injustiça é assim, atirada ao mar sem escrúpulos...
Mas estas línguas, são línguas que apenas sabem falar, não conhecem o gosto da felicidade, porque ao falarem tanto o veneno da língua amarga nas suas bocas e não permitem saborear outras coisas boas da vida.
Sempre bonitos os teus textos ^_^
Olá, Carla.
A mulher da história e a sua tragédia existem apenas nas palavras; se sentiste a tristeza da injustiça, as palavras fizeram o seu trabalho. ;)
Felizmente também há línguas boas. :)
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