ilustra: Manuel Alves
É uma criança com fome o
meu país. Fome de tudo. E, porque o meu país é mudo, sou eu quem o diz.
O meu país tem um
presidente contente, que julga que o estado de graça é a complacência para com
os culpados da trapaça que apunhala nas costas o trabalho de gente honesta e
decente. O homem no cargo diz que tudo está bem, mesmo quando a democracia
sofre de embargo para todas as pessoas de bem. As pessoas de mal não sofrem com
isso, pois são elas que fazem do homem no cargo submisso.
O meu país tem um
primeiro-ministro sinistro, que nega toda a estupidez do poder que exerce na
sua vez. O seu tempo de reinar à cabeça do governo criou um mal-estar que, por
mais que ele se esforce para que toda a gente esqueça, deixou o meu país
enfermo. Não sei se esse homem que pode de verdade, abaixo do homem no poder, é
um caso de insanidade mas o que mais há-de ser? Imbecil, será ou não. Mas tem
perfil de pau-mandado dos interesses obscuros de quem parasita os fundamentos
da nação.
O meu país tem um
governo equilibrista sobre o abismo, com uma falha no mecanismo interno a
fazê-lo pender para o fascismo. A lei da terra beneficia aquele que erra. A
justiça até seria uma anedota castiça mas se a verdade da igualdade não
assentasse numa premissa postiça. Tudo o que é justo apanha o governo de susto,
principalmente quando se eleva a voz da gente a dizer que todos são iguais, mas
outros são mais. Uns são filhos da mãe, outros são filhos de ninguém.
O meu país tem uma
política de furto; pilha casas, empregos, salários, direitos e liberdades numa
epidemia mais mortal a cada surto. Vive-se de nada quando quem devia dar tira,
e há uma liberdade envenenada até no ar que se respira. A oposição dos partidos
é uma colecção de favores devidos, a mão que lava a outra numa parelha obscena,
que não sente culpa, remorso nem pena. É o eterno compadrio de alternância que
se mantém, desde a minha infância, por anos e anos a fio, num vaivém de desdém.
O meu país tem um povo
que é coisa mole dentro da casca do ovo. Ainda não nasceu. Ainda não sabe o que
é seu. Ainda é só população desprovida de acção. É esperar que ganhe coração
com força de intenção. É esperar que a casca se parta quando a população já
estiver mesmo farta. Mas a casca não se parte sozinha, como solução demasiado
fácil para a dificuldade de uma adivinha. Cada um terá de sangrar os nós dos
dedos sem medos. É esmurrar a casca por dentro, em desafio ao poder do centro
que guarda todas as entradas e saídas, com as suas regras estabelecidas, e
gritar palavras de coragem selvagem. Se quiser, entro! Se quiser, saio! Mesmo
que me ataquem com todo o poder do centro, não caio!
O meu país tem esperança
de mudança. A esperança é uma ilusão de criança. A infância é o pouco tempo que
temos para percorrermos muita distância. É a pressa de uma viagem que se faz
sem sabermos onde será a última paragem. Mas nós, adultos, sabemos que, como
ensina o ditado, se parar é morrer, ao deixarmos as coisas neste estado, então,
será outro o chavão: calar é perder.
O meu país não me
pertence. É esta a realidade que me vence. É coisa para dar e vender nas mãos
de quem não quer saber. É pedaço de chão mais duro do que côdea de pão. É vida
difícil para se ter quando tudo o que se quer é viver. É uma promessa sem
fundamento que oferece a embalagem do alimento que, por dentro, vem vazia de
sustento. Sou forte, mas preciso de sorte. E da força de um cento, caso
contrário, não aguento.
O meu país, o meu país…
3 comentários:
o ovo está podre, só pode. apenas as bactérias mais resistentes se safam. depois do bolor, volta o sangue. porque é cíclico, da podridão nasce vida. e enquanto houver vida...
[excelente ilustração! pena não dar para ver maior]
Há a Roda dos Alimentos... esta é a Roda dos Acontecimentos. :)
[a ilustração não necessita de ser analisada à lupa; o seu significado é evidente a olho nu ;)]
... (ainda) há esperança. é a lei do Lavoisier :)
[bem sei que o significado salta à vista, mas eu gosto de mergulhar nos pormenores, perceber a técnica, entendes?]
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