terça-feira, 18 de junho de 2013

o meu país

ilustra: Manuel Alves

É uma criança com fome o meu país. Fome de tudo. E, porque o meu país é mudo, sou eu quem o diz.
O meu país tem um presidente contente, que julga que o estado de graça é a complacência para com os culpados da trapaça que apunhala nas costas o trabalho de gente honesta e decente. O homem no cargo diz que tudo está bem, mesmo quando a democracia sofre de embargo para todas as pessoas de bem. As pessoas de mal não sofrem com isso, pois são elas que fazem do homem no cargo submisso.
O meu país tem um primeiro-ministro sinistro, que nega toda a estupidez do poder que exerce na sua vez. O seu tempo de reinar à cabeça do governo criou um mal-estar que, por mais que ele se esforce para que toda a gente esqueça, deixou o meu país enfermo. Não sei se esse homem que pode de verdade, abaixo do homem no poder, é um caso de insanidade mas o que mais há-de ser? Imbecil, será ou não. Mas tem perfil de pau-mandado dos interesses obscuros de quem parasita os fundamentos da nação.
O meu país tem um governo equilibrista sobre o abismo, com uma falha no mecanismo interno a fazê-lo pender para o fascismo. A lei da terra beneficia aquele que erra. A justiça até seria uma anedota castiça mas se a verdade da igualdade não assentasse numa premissa postiça. Tudo o que é justo apanha o governo de susto, principalmente quando se eleva a voz da gente a dizer que todos são iguais, mas outros são mais. Uns são filhos da mãe, outros são filhos de ninguém.
O meu país tem uma política de furto; pilha casas, empregos, salários, direitos e liberdades numa epidemia mais mortal a cada surto. Vive-se de nada quando quem devia dar tira, e há uma liberdade envenenada até no ar que se respira. A oposição dos partidos é uma colecção de favores devidos, a mão que lava a outra numa parelha obscena, que não sente culpa, remorso nem pena. É o eterno compadrio de alternância que se mantém, desde a minha infância, por anos e anos a fio, num vaivém de desdém.
O meu país tem um povo que é coisa mole dentro da casca do ovo. Ainda não nasceu. Ainda não sabe o que é seu. Ainda é só população desprovida de acção. É esperar que ganhe coração com força de intenção. É esperar que a casca se parta quando a população já estiver mesmo farta. Mas a casca não se parte sozinha, como solução demasiado fácil para a dificuldade de uma adivinha. Cada um terá de sangrar os nós dos dedos sem medos. É esmurrar a casca por dentro, em desafio ao poder do centro que guarda todas as entradas e saídas, com as suas regras estabelecidas, e gritar palavras de coragem selvagem. Se quiser, entro! Se quiser, saio! Mesmo que me ataquem com todo o poder do centro, não caio!
O meu país tem esperança de mudança. A esperança é uma ilusão de criança. A infância é o pouco tempo que temos para percorrermos muita distância. É a pressa de uma viagem que se faz sem sabermos onde será a última paragem. Mas nós, adultos, sabemos que, como ensina o ditado, se parar é morrer, ao deixarmos as coisas neste estado, então, será outro o chavão: calar é perder.
O meu país não me pertence. É esta a realidade que me vence. É coisa para dar e vender nas mãos de quem não quer saber. É pedaço de chão mais duro do que côdea de pão. É vida difícil para se ter quando tudo o que se quer é viver. É uma promessa sem fundamento que oferece a embalagem do alimento que, por dentro, vem vazia de sustento. Sou forte, mas preciso de sorte. E da força de um cento, caso contrário, não aguento.
O meu país, o meu país…

segunda-feira, 3 de junho de 2013

um sorriso de paisagem

No fundo, bem lá ao fundo, havia um pedacinho de verde perdido no horizonte do mundo. Era um sorriso de paisagem ou apenas a minha imaginação a acenar-me de passagem. Não sei. Passado o momento, não sei o que era. Mas olhei. E ainda bem, porque tudo o que está de passagem não espera. Havia no céu azul uma clareza de vidro de janela com transparência de limpeza. O horizonte era a linha dentada do monte. Recortes de chão que, ao longe, me cabiam na palma da mão. A subir e a descer, até onde a vista era capaz de ver. E eu, à janela, numa espera que não era mais do que o desejo de me aproximar dessa paisagem e perder-me nela. Mas apenas fiquei sentado aqui, a sonhar ilusões viajantes para terras distantes, por causa de um pedacinho de horizonte que vi.



NOTA: ver em qualidade máxima, para nitidez do texto.

sábado, 1 de junho de 2013

a criança entretida

À porta da vida, um gato abandonado encontrou uma criança entretida. Era um menino que tocava flauta, de ouvido, sem pauta. O menino descalço era flautista que, sem ser artista, não soprava uma nota em falso. E o gato sentado, a escutar; quando tivesse aquele som memorizado afinaria os bigodes para miar.
O menino flautista via o gato mas imaginava ilusões da vista. À sua frente, imaginava uma fera selvagem capaz de aterrorizar toda a gente à sua passagem. Ouvira dizer que a música amansava qualquer fera e transformava a explosão do espírito selvagem numa paciência de espera.
O gato abandonado encontrou um amigo à porta da vida e deixou de ser fera enraivecida. Não foi a música que o amansou, foi a atenção do menino descalço que a tocou.

(a partir de uma imagem de Vladimir Zotov)