terça-feira, 28 de maio de 2013

as putas das línguas

Junto ao mar havia uma feiticeira. Diziam que quando as mulheres nasceram, ela foi a primeira. Espalhavam-se rumores de maledicências cheias de horrores. Que a feiticeira encantava homens sem calma, que depois de seduzidos perdiam a alma. Eram tiranias de línguas truculentas que mexiam nas bocas de mulheres ciumentas. Junto ao mar vivia apenas uma mulher muito só. Tudo o que diziam eram coisas mesquinhas de gente sem coração nem dó.
A mulher chorava a morte do marido como se cada instante fosse aquele em que ele tinha partido. Partir não era a mesma coisa que morrer. Partir era deixar de viver de uma maneira menos feia. Já morrer, isso, era coisa de mosca comida na teia. Mas a mulher não chorava com lágrimas. Cantava e dançava. Fazia versos no baloiçar das águas. Era assim que imaginava filhas nas ondas e espantava as mágoas.
Mas as putas das línguas envenenavam-lhe a reputação. As mulheres ciumentas inventavam-lhe traições de coração. Diziam que a feiticeira comia maridos. Que os fazia sair de casa, e até deixar os filhos esquecidos. A feiticeira destruía o lar de qualquer homem que fosse capaz de a amar. E todos eram capazes. Homens e até rapazes.
A mulher sentava-se na praia, tardes inteiras, à espera do pôr-do-sol. Às vezes, os homens que regressavam do mar ofereciam-lhe coisas apanhadas no anzol. O que ela queria era que lhe oferecessem companhia. Nenhum ficava. Todos tinham receio do que depois se falava. E ela ficava sentada na areia até escurecer. Havia noites em que esperava pela lua cheia que vinha depois de o sol descer.
As putas das línguas só falavam da devassidão que se passava na escuridão. A feiticeira tinha mais poder quando se acabava a luz do dia. Não havia nada que não pudesse fazer, e fazer tudo era o que ela queria. Entoava feitiços para deixar os homens submissos, e mexia-se em danças despidas de saia para cativar os homens que regressavam de noite à praia. A feiticeira deixava as camas vazias e frias. Arrefecia matrimónios com o bafo gelado de fantasmas e demónios.
A mulher adormecia com o fervilhar da espuma salgada. Era verdade que se despia, mas para se banhar no mar e adormecer lavada. Lavada de memória e não de pele, que o sal seca e deixa a escória que estala em casca que apenas a água doce repele. Gostava de adormecer assim, na escuridão e sozinha. Mas, às vezes, lá vinha um ou outro homem que trazia na mão uma luzinha. Não tinha o direito de mandar ninguém embora. A praia era deles também, e pertencia-lhes a qualquer hora.
As putas das línguas reclamavam de todas as manhãs passadas sozinhas na cama, porque os maridos já não se encontravam. Era a feiticeira que os levava. Ela mandava no sono das pessoas que se deitavam de corpo cansado. Quando uma esposa fechava os olhos na luz que se apagava, o marido era-lhe roubado. Era preciso fazer alguma coisa que a levasse dali com os seus encantos. Não iam perder mais maridos depois de já terem perdido tantos.
A mulher acordava com os passos dos pescadores que se levantavam cedo para a faina. Era um deslizar de barcos na areia, que se faziam ao mar. O canto do galo daqueles lados era a coragem dos homens acordados que não se deixavam intimidar. Deitavam pés descalços à água, sujeitos aos azares do desgosto e da mágoa. Ela só pensava ai se o mar não amaina. Pedia à Santa para os proteger. A todos, sem escolher. O marido tinha-lhe partido num dia em que ela se esqueceu de fazer aquele pedido.
As putas das línguas tecerem planos malvados. Não queriam que os maridos continuassem enfeitiçados. Enquanto eles lutavam com o mar, lá muito longe do olhar, elas pensaram no que fazer para aquilo se resolver. As feiticeiras atavam-se e afogavam-se. Iam fazer tudo às suas próprias custas, e deixariam as contas saldavas e justas. A feiticeira não havia de lhes levar mais maridos. Já bastava o que sofriam pelos idos.
A mulher tinha deixado os pescadores passar, e adormeceu outra vez. Antes não se tivesse voltado a deitar. Foi o pior e último erro que fez. Acordou novamente, rodeada de gente. Estava deitada no meio de uma roda de esposas muito zangadas. Foi enrodilhada em cordas bem apertadas. Sorriu para aqueles rostos cheios de ódio. Sentia-se a vencedora no primeiro lugar do pódio. Finalmente ganharam coragem para a atar. Ou cobardia, não sabia. Só sabia que a seguir a deitariam ao mar.
As putas das línguas desculparam-se umas às outras, sem excepção. Aquilo era o que tinham de fazer, e bastava como razão. Não tiveram piedade para a arrastar até à água e apenas deixá-la afundar. Ergueram-na nos braços e percorreram a praia em movimentos de saia, com o peso da feiticeira a afundar-lhes os passos. Subiram lá acima, bem ao topo da colina. Seguiram o caminho do rochedo onde as alturas davam tonturas de medo. Era ali que o iam fazer. Iam atirá-la lá de cima e ficar a vê-la morrer.
A mulher fechou os olhos e aceitou. Chorou. Não era feiticeira, nem tinha roubado um único marido. Nada daquilo fazia sentido. Sentia saudades daquele que perdeu. Mas esse marido era seu. Ia voltá-lo a abraçar. Pediu às putas das línguas que a atirassem ao mar.

domingo, 26 de maio de 2013

o que somos

Somos livros de ler e deitar fora. Uma leitura sem vontade que se despacha em menos de um quarto de hora. Num qualquer quarto, a qualquer hora. Somos rapazes disfarçados de raparigas que se disfarçam de rapazes para conquistar raparigas que apenas querem ser conquistadas por rapazes que se disfarçam de homens. E essas raparigas apenas gostam de se disfarçar de mulheres. É o que eu digo para o espelho. O que é que queres, caralho? Somos todos assim, gajos e gajas, umas putas travestidas, sem coração, que aceitam dinheiro de qualquer mão. O corpo não interessa. Quando já não serve para uma pessoa escolhe-se outra que não seja essa. Muda-se a pele, está rota, tingida, apertada, fora de moda, ou qualquer outro nada — que se foda — e veste-se outra peça. O corpo antigo é saco com restos de comida, que se deixa atrás do grande contentor de lixo, em cima do charco de mijo de cão que se evapora do chão.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

entre o colossal e o abissal

Duas ideias que partilham o mesmo destino, o profano e o divino. Todos temos deuses e demónios interiores; uns que nos aliviam as dores e outros que nos atormentam com horrores. Mas os deuses não nos podem salvar das profundezas do mar se o nosso barco afundar e não soubermos nadar. Quem nos salva somos nós que, com o nosso próprio destino, todos lutamos sós. A grandeza de tudo o que é humano reduz-se a espessura de cabelo mais fino do que qualquer fio a partir do qual é tecido um simples pano. Essa grandeza talvez seja a esperteza. Talvez apenas seja a insatisfação de um ser que, por natureza, tem sempre menos do que deseja. O ser humano é uma criança perdida entre o colossal e o abissal, ambos sinónimos de uma grandeza maior que ultrapassa a limitada compreensão do ser pensador.
Os demónios, onde estão? Eles aparecem. É só esquecermos o coração. Depois disso, são os demónios que não nos esquecem. Se formos maus, as nossas vidas tornam-se naus, barcos sem fundo que nos deixam afogar nas tormentas do mundo. Mas há sempre aquela esperança de que depois da tempestade vem a bonança. Mas alguém sabe mesmo o que isso é se não tiver fé? Mas tem de ser uma fé que faz seguir caminho em vez de regredir em marcha-a-ré. Só se consegue essa proeza com uma vontade de acreditar que nos vem daquele lugar onde só com muita coragem se enfrenta a incerteza. O lugar somos nós. Se não o conseguirmos encontrar estaremos sempre sós.


(a partir de uma imagem de  Dehong He)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

a fada e o pardal

A fada perdeu as asas numa aposta com o pardal azul. Se a sua sorte fosse outra, teria ganho um bule. Um bule mágico, não menos. Daqueles que faz um chá muito diferente de qualquer outro que já bebemos.
Mas o pardal enganou a fada, porque a aposta era desigual, uma vez que ele nunca perderia nada. É que o bule nem era dele, e tudo o que ele tinha era apenas um cantil que, na verdade, não passava de um frasco de vidro com o fundo partido, o que tornava ainda mais habilidoso o ardil.
A aposta ficou apenas entre os dois e não voltou a ser mencionada depois.
A fada procurou em livros mágicos por um feitiço que desfizesses todas as apostas que resultam em destinos trágicos. Eram livros escritos com tinta invisível que guardava os segredos do impossível. A fada queria as suas asas de volta às costas e prometeu a si mesma que, se isso acontecesse, se deixaria de apostas.
O pardal chamou o irmão para o ajudar a levar os livros mágicos para longe, muito acima do chão. Lá em cima, muito acima das nuvens flutuantes, a fada não poderia alcançar os livros porque, sem asas, ficar-lhe-iam sempre distantes.
A fada pediu ajuda ao aranhiço tecelão, para que ele tecesse uma teia que prendesse o livro com o melhor feitiço e os pardais não conseguissem afastá-lo muito do chão. O aranhiço atendeu ao seu apelo e a fada protegeu o livro que tinha o melhor feitiço. Era uma poção que tinha de ser mexida com colher de prata e temperada com suspiro de um cogumelo.
O pardal não tinha feito por mal. Enganou a fada, mas tinha uma boa razão. Para ele, não queria nada pois as asas eram para o irmão. Um pardal sem asas ao nascer perde logo a maior razão de viver. Para o irmão poder voar, o pardal viu-se forçado a apostar.
A poção da fada, por uma ironia quase engraçada, era um chá do melhor que há. E o pior era que precisava do bule que deixara escapar na aposta que perdera com o pardal azul. Chamou o pardal e desafiou-o a aceitar a última aposta que ela alguma vez faria. A fada já não tinha asas para apostar e, como não tinha o que mais arriscar, apostou a sua magia. Disse que só precisaria que o pardal lhe emprestasse o bule encantado para o desafio ser validado.
O pardal escutou com atenção e não encontrou nenhum senão. Não possuía o bule, e não… só tinha a ganhar e nada perdia. Mostrou o frasco de vidro com o fundo partido e disse que era o bule mágico que fazia o chá impossível de igualar apesar de parecer apenas um frasco vulgar.
A aposta voltou a ser um segredo para mais ninguém conhecer, e quem ganhou e perdeu foi a única coisa que se chegou a saber.
A fada esboçou um sorriso e fez aquilo que era preciso. Leu o feitiço da tinta invisível em tom seguro e audível.
“O chá desfaz a decisão má. O chá que se bebe. O cogumelo suspira pelas folhas secas amolecidas na humidade para além do prado separado da floresta pela fronteira da sebe. A colher de prata mexe tudo, sem tilintar, sem enjoar no rodopiar do chá que será bebido por um paladar sortudo. O chá desfaz a decisão má. O que faz o bule ter magia é o chá que dentro dele rodopia nas voltas da colher, e o chá pode fazer-se até dentro de um frasco qualquer. O segredo está em quem o bebe de consciência leve. O bule é a vontade de quem persiste pois o bule, o bule, esse, não existe.”
A fada bebeu o chá e desfez a decisão má. Recuperou as asas e manteve a magia ao vencer a última aposta que alguma vez faria. Partilhou o feitiço com o pardal para que ele pudesse fazer um chá igual, porque o chá também tinha o poder de anular o azar de pardais desprovidos de asas ao nascer.
O pardal azul, para dar novas asas ao irmão, acreditou na sua determinação e fez dessa vontade o bule.

(a partir de uma imagem de Lorie Davison)